quinta-feira, 15 de março de 2018

Sem limites à “Pouca Vergonha Nacional” - Jorge Amaro


Por:Jorge Amaro
A nova lei de financiamento dos partidos políticos, o veto presidencial ao diploma, em nome do “sentimento nacional”, a sua aprovação na Assembleia da República, após ficcionada revisão, sem que algo se tenha alterado no seu substrato, fizeram-me descer a atenção.

A forma opaca como os partidos políticos e seus representantes, os deputados, supostamente da nação, em profundo desrespeito pelo poder de representação que lhes foi conferido pelo voto popular, usam e abusam de uma imunidade constitucional ao abrigo do nº 1 do Artigo 157º da CRP para legislar em benefício directo do partido que representam e a quem obedecem, à revelia do interesse nacional, repugna-me.

Esta “Gaiola de Faraday” que atribui a cada deputado a imunidade necessária para não ter de responder, civil, criminal ou disciplinarmente pelos votos e opiniões que emite no exercício das suas funções, é a impunidade, o campo eléctrico nulo da política, aquele que resulta da ausência de mecanismos representativos, uninominais, que permita aos cidadãos rescindir para substituir, aqueles que privilegiam a sua condição de “servos” partidários, submissos a uma carta de alforria, em detrimento da representação que lhes foi conferida pelos seus representados.

A esse propósito, da representação, não poderia deixar de fazer aqui a reflexão algébrica que se impõe à atual representação política no Parlamento, aquela que legisla em nome de todos nós portugueses, uma reflexão que não visa contestar ou criticar a solução governativa encontrada, a famosa “Geringonça”, muito menos avaliar populismos eleitorais dos atores que lhe deram vida, mas sim, para analisar o deficit de cidadania que por ausência de participação cívica dos cidadãos em sufrágios eleitorais, permite a uma minoria legitimada, governar como se fosse uma “maioria”.

Assim sendo e porque os números são como o algodão, “não enganam”, importa referir que a atual representação parlamentar na Assembleia da República (230 deputados) em resultado das eleições legislativas realizadas a 4 de outubro de 2015, tendo sido sufragada por 5.408.805 votantes, representa 55,86% de um universo eleitoral de 9.682.553 inscritos em território nacional e estrangeiro.

Aprofundando a análise numa relação racional entre o número de eleitores inscritos e o número de votos expressos, com total propriedade refiro que, numa primeira análise o Partido Socialista ao obter 1.747.685 votos se assume como um governo em representação de 18,05% dos eleitores inscritos, ou ainda e numa segunda análise mais alargada afirmo que a solução parlamentar encontrada, a “Geringonça”, permitiu ao atual governo do PS encontrar estabilidade governativa numa solução negociada com o BE e PCP/PEV a que corresponde um total de 122 deputados, em representação de 28,35% dos eleitores inscritos, ou seja, 2.744.557 votos expressos.

E porque o verdadeiro cancro da democracia são os elevados níveis de abstenção eleitoral, 44,14%, desvalorizo neste contexto a representação partidária obtida, consciente de que a solução do problema não passará nunca pelo conforto eleitoral que esta “doença” concede aos partidos ditos do arco da governação ou àqueles que a apoiam, mas sim, pelo combate político que a cidadania terá de realizar no sentido de uma educação cívica geracional para a cidadania, que promova a inclusão e simultaneamente combata o clientelismo que um qualquer cartão partidário confere aos seus apaniguados.

Encontro nesta representação algébrica, desproporcionada, razões para referir que a atual Assembleia da República se inscreve no contexto da ausência de limites à “pouca vergonha nacional “ porque racional seria que a Assembleia da República preenchesse apenas os lugares inerentes aos votos expressos dos cidadãos, 128 deputados, e que as restantes cadeiras, 102 lugares, se encontrassem vazias por inexistência de representação, a abstenção eleitoral, a “vergonha nacional “ que coloca aos cidadãos a emergente necessidade de participação cívica, capaz de impedir a aprovação partidária de leis discricionárias, lesivas dos direitos e deveres de cidadania, neste particular, a nova lei de financiamento partidário.

Parafraseando João Cardoso Rosas, os partidos políticos, esses “grupos organizados de indivíduos que visam conquistar o poder e mantê-lo, dentro das regras do regime constitucional ou até procurando subvertê-las” deveriam auto financiar-se sem precisar de mecenas, porque quem dá espera receber algo em troca e quem recebe fica no mínimo com uma dívida de gratidão, e como se não bastasse alimentar-se das subvenções do Estado, dinheiro de todos nós, veem ainda subverter regras constitucionais em benefício próprio,  auto discriminando-se, pela lei, em relação aos cidadãos.

A ideologia, enquanto representação coletiva da sociedade, a ordem das ideias, não retira capacidade cognitiva aos cidadãos, antes pelo contrário, permite a distinção clara entre políticas para comparar as forças em competição, o pluralismo ideológico, para delas conscientemente aferir através desse poder único que é o voto, qual o modelo pretendido para o domínio do Estado, da lei e da governação.

Sem limites à “Pouca Vergonha Nacional”, alguns partidos representados na Assembleia da República, cujas siglas me recuso a referir, e outros que igualmente representados também não refiro porque o seu voto contra representa uma estratégia populista para melhor se posicionar em sondagens, mas dele retiram idêntico benefício, todos legislam de forma discricionária sem respeitar valores de equidade em relação aos cidadãos.

Ademais, com o beneplácito do Presidente da República, de quem me assistem fortes dúvidas de vetar de novo este diploma, opinião que fundamento nas posições públicas por si assumidas, nomeadamente quando em primeira instância referiu que no uso das suas competências tinha vetado o diploma em nome do “sentimento” nacional, fizeram-me descer de novo a atenção.

Vem agora o senhor Presidente da República considerar que os deputados fizeram um esforço para ir ao encontro da sociedade civil e do seu veto inicial, imagem que revejo nesta infeliz, mas “profética” declaração: “A minha recomendação era muito simples: têm de discutir e explicar aos portugueses aquilo que querem aprovar. Fizeram isso. Até fizeram mais do que eu tinha proposto. Porque eu tinha colocado como hipótese apenas um debate amplo. Não confirmaram só, alteraram".

Que a versão final do diploma sobre financiamento partidário agrade ao Presidente da República, pela “simplicidade” que lhe atribui ou ainda pela grandeza do benemérito gesto que atribui aos deputados, isso não me surpreende, faz parte de uma cultura política, a do afeto, quiçá com os olhos postos na reeleição,  ad contrário à figura fria e austera do seu antecessor,  mas não o descola da inóxia imagem de um Chefe de Estado cujos argumentos e decisões nem sempre recolhe a plena respeitabilidade institucional dos partidos que se fazem representar na Assembleia da República.

A bem da Democracia, que a separação e interdependência de poderes consagrados na Constituição da República Portuguesa, princípios fundamentais a um Estado de direito democrático se sobreponha aos difusos interesses partidários representados na Assembleia da República, como corolário matricial dos direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos, designadamente daqueles que adormecidos pela ausência de verdade e rigor das diferentes governações, ou dos ridículos afetos, se disponibilizem a reverter o atual status, para assumir uma maior participação cívica que altere os limites a esta “pouca vergonha nacional”.

Jorge Amaro

15/03/2018