quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

Lei dos Solos: Frente Cívica apela à revogação da “ignóbil trafulhice”

 

Felix König, CC BY 3.0, via Wikimedia Commons

A associação Frente Cívica escreveu esta quarta-feira aos partidos representados na Assembleia da República, apelando à revogação do Decreto-Lei do Governo que pretende facilitar a transformação de solo rústico em solo não urbanizável, alertando que a medida “leva a práticas corruptivas”. O Parlamento discute na próxima sexta-feira o Decreto-Lei, que tem sido universalmente contestado por peritos e organizações da sociedade civil.

Na carta enviada aos deputados, a Frente Cívica aponta que “Os amplos poderes de alteração do uso de solos previstos no Decreto-Lei […] constituem previsível – aliás, inevitável – lastro de corrupção”, ao estimularem a promiscuidade entre autarcas, partidos políticos e especuladores imobiliários. Este mecanismo terá como efeito imediato o brutal encarecimento dos solos, tornando ainda mais difícil a resolução do problema da habitação em Portugal.

“Estas operações urbanísticas valorizarão os solos em seis ou sete vezes. Margens desta dimensão (600% ou mais) só se obtêm no tráfico de droga de alto nível e, agora, no urbanismo”, alerta a Frente Cívica. “E assim, em ano de eleições autárquicas, os “patos-bravos” do imobiliário ganharão certamente milhões em manobras de valorização administrativa de terrenos, antes até de construírem uma única casa nos solos reclassificados. Inevitavelmente, uma pequena parte dos seus lucros irá financiar os seus cúmplices, os autarcas e os partidos que se candidatam nas eleições deste ano.”

Por tudo isto, a Frente Cívica sublinha que o Decreto-Lei é “inaceitável e irreformável”, pelo que “Deve ser pura e simplesmente revogado”.

“O Decreto-Lei 117/2024 é uma ignóbil trafulhice. Apelamos à Assembleia da República que nos livre dela, em vez de consagrar para a História este crime legislado”, lê-se na carta.

Inclui-se, para conhecimento, a carta enviada a todos os partidos da Assembleia da República.



Exmas. Sras. e Srs. Presidentes dos Grupos Parlamentares
e Deputada Única Representante de Partido,

 

 

 

Data: 22 de Janeiro de 2025

ASSUNTO: Apreciação Parlamentar n.º 6 /XVI/1.ª, do Decreto-Lei n.º 117/2024, de 30 de Dezembro, que altera o Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial

 

Exmas. Sras.,

Exmos. Srs.,

Através do Decreto-Lei n.º 117/2024, pretendeu o Governo autorizar a reclassificação de terrenos não edificáveis para solo urbano, mediante um novo mecanismo de alteração simplificada dos Planos Directores Municipais, a pretexto da crise de habitação que se vive em Portugal, sentida com especial gravidade nas principais zonas urbanas do País.

Se vier a entrar em vigor, esta legislação virá provocar alterações abruptas nos Planos Directores Municipais e violar a coerência, previsibilidade e segurança jurídica do ordenamento territorial, fazendo perigar um dos princípios basilares da democracia local. Os amplos poderes de alteração do uso de solos previstos no Decreto-Lei são ilegítimos, porque lesam gravemente o ordenamento do território. Para além disso, constituem previsível – aliás, inevitável – lastro de corrupção.

A permitir-se este mecanismo, e as enormes margens de discricionariedade de decisão que consagra, iremos nos próximos tempos assistir a uma corrida a terrenos rústicos por parte dos promotores imobiliários próximos do poder autárquico. Estes irão adquirir solos rústicos a preço de saldo. De seguida, irão transformá-los em solo urbano para construírem o que bem entenderem. Estas operações urbanísticas valorizarão os solos em seis ou sete vezes. Margens desta dimensão (600% ou mais) só se obtêm no tráfico de droga de alto nível e, agora, no urbanismo. E assim, em ano de eleições autárquicas, os “patos-bravos” do imobiliário ganharão certamente milhões em manobras de valorização administrativa de terrenos, antes até de construírem uma única casa nos solos reclassificados. Inevitavelmente, uma pequena parte dos seus lucros irá financiar os seus cúmplices, os autarcas e os partidos que se candidatam nas eleições deste ano.

Esta legislação, se efectivamente entrar em vigor, irá ainda permitir que algumas operações urbanísticas ilegais, eventualmente autorizadas nos últimos anos, sejam agora legalizadas, ao abrigo do princípio de aplicação da legislação mais favorável. Desta forma, o Decreto-Lei 117/2024 não só incentivará novos assaltos ao território, mas funcionará também como amnistia de crimes já perpetrados.

Os terrenos que irão beneficiar destas valorizações serão, em 30%, segundo o Decreto-Lei, comercializados livremente, ou seja, ao valor de mercado. Os restantes 70% terão de ser utilizados para habitação pública ou, alternativamente, em habitação de valor moderado. Mas esta habitação a valor moderado pode atingir valores até 125% da mediana de preço de venda para o concelho de localização, ou seja, pode ser superior ao próprio valor de mercado.

Legislação que designa como moderado um valor superior ao valor de mercado é, só por isso, enganadora. Legislação que permite ganhos milionários aos especuladores do urbanismo e aos autarcas que aceitam ser seus cúmplices leva a práticas corruptivas. O diploma que é agora levado à apreciação da Assembleia da República é por tudo isto inaceitável e irreformável. Não deve ser “melhorado” com alterações cosméticas que se limitariam a dar nova roupagem ao mesmo assalto aos bens públicos e ao território nacional. Deve ser pura e simplesmente revogado.

O Decreto-Lei 117/2024 é uma ignóbil trafulhice. Apelamos à Assembleia da República que nos livre dela, em vez de consagrar para a História este crime legislado.

Somos, com os nossos cumprimentos

Pela Frente Cívica,

 

Paulo de Morais, Presidente

 

 

João Paulo Batalha, Vice-Presidente