quinta-feira, 18 de outubro de 2018

"Quem não poupa água nem lenha, não poupa coisa que tenha"


"Quem não poupa água nem lenha, não poupa coisa que tenha" 



Nunca foram tão modernas e actuais estas palavras sábias da minha mãe que a sua avó lhe ensinou.

Temos hoje uma nova consciência ambiental e de economia sustentável que invariavelmente nos conduz para a sabedoria dos nossos avós e retomamos práticas de antigamente agora rotuladas de revolucionárias e modernas.


Ter uma horta em casa e fazer compostagem, consumir a fruta da época, a bonita e a feia, e nos tempos de abundância fazer compota para a consumir mais tarde, comprar a granel na mercearia do bairro e levar as compras embrulhadas em papel num saco que levamos de casa, reparar um electrodoméstico antes de o enviar para o lixo e comprar outro, pôr meias solas nos sapatos para andarem mais uns quilómetros, baixar as bainhas das calças que assim vão servir mais uns meses e darão trabalho à costureira, transformar as velhas t'shirts em panos de pó ou as calças de ganga que se transformam em pegas para as panelas quentes entre tantos outros exemplos de princípios que aprendi com a minha mãe e que hoje vejo anunciados como exemplos ultra modernos importados dos países mais desenvolvidos.

Tem hoje grande sucesso o comércio de artigos em segunda mão e proliferam as plataformas de trocas de bens usados. Há um novo conceito de banco de horas que faz lembrar os vizinhos que se ajudavam mutuamente, contribuindo cada um com aquilo que sabia fazer melhor.

O vintage é moda. Aquilo que a minha mãe aprendeu da sua avó e me ensinou toda a vida é agora apresentado à geração dos meus filhos como uma revolução necessária para que os seus netos recebam um planeta mais saudável.

Seguindo as melhores práticas dos países desenvolvidos investimos milhões de euros a educar toda uma geração de crianças a separar o lixo para permitir a sua reciclagem "tal como se faz lá fora" e assim alimentar toda uma nova indústria florescente que nasceu do lixo, literalmente. Mas esquecemos por demasiado tempo que, antes de reciclar, podemos e devemos reutilizar!

Recordo que quando era criança se devolviam as garrafas de vidro na mercearia para voltarem à fábrica onde seriam reutilizadas. Às garrafas de vinho usadas retiravam-se os rótulos e eram lavadas para se engarrafar o vinho novo. A reciclagem do vidro foi o primeiro passo desta indústria em Portugal e ainda me lembro do meu espanto quando apareceram os primeiros "vidrões" repletos de garrafas em perfeito estado ... a caminho da destruição!

Depois do vidro passamos a reciclar tudo, e bem! Mas tardamos a perceber que a reciclagem é o fim de vida do bem e que no processo de transformação gastamos água e energia, vamos emitir carbono e poluir ... enquanto alimentamos a milionária indústria da reciclagem.

Reutilizar é a solução! 
Hoje andamos satisfeitos ao reutilizar os sacos de plástico do supermercado mas esquecemos o que levamos lá dentro. As garrafas de cerveja, por exemplo, vêm embrulhadas em packs de 6 e que por sua vez estão acondicionadas em embalagens plásticas de 24 que por sua vez chegam ao supermercado em paletes revestidas por plástico, na melhor das hipóteses vão parar ao vidrão e com elas todo o cartão e plástico que as envolveu até chegar ao nosso saco reutilizável!

Já não é preciso ser visionário para imaginar um supermercado onde se pode comprar a granel e devolver as embalagens reutilizáveis...como antigamente.

Ver longe é assumir um conjunto de políticas que promovam a reutilização dos bens e o prolongamento da sua vida útil antes da sua imperativa reciclagem "tal como se faz lá fora". Porque não investir já alguns milhões na educação para a reutilização com direito a anúncios na televisão e sessões de esclarecimento e actividades pedagógicas nas escolas, "tal como já se faz lá fora"?

Para quando o investimento de alguns milhões de euros em benefícios fiscais aos sapateiros, costureiras, reparadores de electrodomésticos, restauradores de mobiliário e de uma forma geral todas as profissões que promovam o prolongamento da vida útil dos bens, "tal como já se faz lá fora"?

A ver pelo exemplo dos livros escolares, este caminho não será fácil!
Com a desculpa dos eventuais prejuízos causados à indústria livreira, demoramos 12 anos a compreender e implementar a lei 47/2006 que prevê a reutilização dos livros escolares. Aquilo que aprendi em casa e que é para mim evidente e consensual, ainda hoje não o é para muito boa gente.

Ninguém se lembraria de deitar ao lixo o livro d'Os Maias depois do seu filho o ler na escola mas ninguém com responsabilidade na educação se indignou com o facto de, ano após ano, milhares de toneladas de livros escolares morrerem em caixotes do lixo depois de serem lidos uma só vez. Os mesmos livros que ensinaram toda uma geração a separar o lixo e reciclar!

Após 7 anos a promover a reutilização dos livros escolares ainda fico surpreso com os obstáculos e resistências que vou encontrando neste processo. Se compreendo facilmente o desconforto das 2 empresas que compõe a indústria livreira em Portugal, confesso que nunca imaginei quando me envolvi neste assunto que tantos políticos, directores escolares, professores e (até) associações de pais se dispusessem a defender cegamente os interesses da indústria livreira contra tudo o que são hoje consideradas boas práticas ensinadas nas escolas onde os livros são usados.


Escrevo este texto enquanto comemoro mais um passo de gigante na caminhada rumo à reutilização universal dos livros escolares - a extensão até ao 12º ano de escolaridade (apenas) no ensino público, da gratuitidade e reutilização dos livros escolares. Não é o fim do caminho mas é um grande avanço!


Dizem os jornais que "agora os livros são grátis" e congratulam-se alguns partidos políticos chamando a si os louros desta conquista. Enganam-se!


Esta vitória é dos milhares de simples cidadãos e algumas (poucas) figuras públicas que nos últimos 7 anos se organizaram para dar vida a centenas de bancos de partilha gratuita de livros escolares fora das escolas e totalmente desligados do corrupto sistema que durante 12 anos impediu o cumprimento da lei. Esta é também uma vitória pessoal da Professora Alexandra Leitão que no exercício das suas funções políticas de secretária de estado adjunta da educação lutou pela implementação desta medida.

"Água mole em pedra dura tanto bate até que fura" ensinou-me a minha mãe.

O exemplo do movimento reutilizar.org prova que os cidadãos organizados em nome de uma causa justa podem combater os interesses de qualquer indústria, por mais poderosa que seja. Perante a determinação e luta persistente dos cidadãos os políticos, por mais corruptos que sejam, logo virão atrás! 


Henrique Trigueiros Cunha18/10/2018