quarta-feira, 22 de março de 2023

Frente Cívica denuncia à Procuradoria Europeia compra de navios da Transtejo

 

"Ferry Transtejo 'Almadense', 03-20. (04).jpg"
por Rúdisicyon sob licença CC BY-SA 4.0.

A Frente Cívica apresentou esta quarta-feira, 22 de Março, uma denúncia junto da Procuradoria Europeia sobre o processo de compra de navios eléctricos sem baterias por parte da empresa pública Transtejo. O caso foi revelado por um acórdão do Tribunal de Contas que recusou autorizar a compra, em separado, de nove conjuntos de baterias eléctricas necessários para que os 10 navios encomendados pela Transtejo, e que já estão em construção, possam navegar. A encomenda original dos 10 navios incluía um único conjunto de baterias.

O Tribunal de Contas extraiu uma certidão do acórdão para o Ministério Público, para que sejam investigadas suspeitas de ilegalidades por parte da Transtejo neste processo, que podem implicar a responsabilização financeira ou até criminal dos gestores da empresa. Mas, dado que o negócio envolveu fundos europeus, a Frente Cívica decidiu denunciar o caso à Procuradoria Europeia, com sede no Luxemburgo, que tem poderes de investigação de crimes que prejudiquem os interesses financeiros da União Europeia.

Na denúncia, a Frente Cívica recomenda que se esclareça não só a conduta da Administração da Transtejo, mas também eventuais responsabilidades do Governo no acompanhamento do negócio, e do Programa Operacional Sustentabilidade e Eficiência na Utilização de Recursos (POSEUR), que autorizou, já depois da compra dos navios ter sido contratada, a utilização de mais verbas europeias para adquirir as baterias. 

Anexa-se cópia da denúncia feita pela Frente Cívica.


Exma. Sra. Procuradora-Chefe da Procuradoria Europeia,

Laura Codruța Kövesi,

Exmo. Sr. Procurador Europeu José Guerra,

 

 

C/c Exma. Sra. Procuradora-Geral da República Portuguesa,
Lucília Gago

 

 

Assunto: Denúncia de potenciais crimes lesivos dos interesses financeiros da UE

Data: 22 de Março de 2023

Exma. Sra. Procuradora-Chefe,

Através do Acórdão nº 7/2023, de 14 de Março do corrente ano[1], decidiu o Tribunal de Contas de Portugal recusar o visto prévio ao “2.º adicional ao contrato nº 03/2021-TT”, submetido pela empresa pública portuguesa Transtejo Transportes do Tejo S.A, que visava adquirir por ajuste directo nove packs de baterias marítimas, pelo valor de €15.512.544, para apetrechar navios de passageiros cuja construção está em curso ao abrigo do citado contrato nº 03/2021-TT, contrato esse no valor de €52.440.00,00.

Ao fundamentar a sua recusa, o Tribunal de Contas sublinhou não apenas a ilegalidade da alteração proposta ao contrato, mas a forma como o próprio contrato inicial, referente à compra de 10 navios de passageiros, é altamente lesivo para o interesse público, por não ter sido desde logo incluído no caderno de encargos desse concurso o fornecimento das baterias necessárias à operação dos navios. Citamos:

«18. A Transtejo comprou um navio completo e nove navios incompletos, sem poderem funcionar, porque não estavam dotados de baterias necessárias para o efeito. O mesmo seria, com as devidas adaptações, comprar um automóvel sem motor, uma moto sem rodas ou uma bicicleta sem pedais, reservando-se para um procedimento posterior a sua aquisição.[2]»

O acórdão imputa à Transtejo omissões graves e dolosas, que visariam ludibriar o Tribunal, de modo a aprovar um negócio lesivo do interesse público:

«27. O primeiro aspeto a sublinhar é que a Transtejo disse ao Tribunal de Contas, num curto período de tempo, uma coisa e o seu contrário para justificar os contratos que submete. Começa por dizer em resposta ao Tribunal no âmbito do processo de fiscalização prévia do contrato de aquisição dos navios (um deles com bateria e outros sem ela) que a exclusão das restantes baterias se justifica por razões gestionárias e que seria, depois, lançado um concurso para as adquirir. O que, presume-se, serviria melhor o interesse público financeiro. Agora vem dizer que só pode comprar as restantes baterias àquele fornecedor, porque a solução adotada é original, desenvolvida só para aqueles navios.

28. No primeiro caso, está a faltar à verdade. Com efeito, quando submeteu o contrato de aquisição dos navios (rectius, parte deles, porque estavam incompletos) a fiscalização prévia sustentou a sua posição gestionária com a abertura subsequente de um concurso público para a aquisição das (restantes) baterias, sendo assim respeitados os princípios estruturantes da contratação pública da igualdade e concorrência, que, de outra forma seriam violados, com alteração potencial do resultado financeiro do contrato - fundamento de recusa de visto [art. 44.º, n.º 1, al. c) LOPTC].

29. Contudo, vem agora dizer que por força da solução técnica decorrente desse contrato ser original, não pode recorrer à abertura de um concurso público para a aquisição das (restantes) baterias. Logo, se essa solução é original - como alega agora -, e ela decorre do contrato, é óbvio que sabia de tal facto quando submeteu esse mesmo contrato a fiscalização prévia.

30. Por isso, sempre seguindo a sua alegação, tinha perfeito conhecimento de que estava a faltar à verdade ao tribunal quando disse que iria recorrer a um “Concurso autónomo para o fornecimento das baterias”, induzindo-o em erro. Concurso impossibilitado pela solução do próprio contrato que submetia a fiscalização.

31. Mais: os pressupostos em que o tribunal tomou a decisão de concessão de visto foram incorretos, porque a entidade faltou à verdade. Sendo que se tivessem sido prestadas ao tribunal as informações corretas - como deveria ter sido feito - a decisão do tribunal poderia ter sido -, à luz do que se acabou de expor e da própria jurisprudência do tribunal nesta matéria - a de recusa do visto[3].

[…]

61. Em síntese: o comportamento da Transtejo, com a prática de um conjunto sucessivo decisões que são não apenas economicamente irracionais, mas também (como se viu) ilegais, algumas com um elevado grau de gravidade, atinge o interesse financeiro do Estado e tem um elevado impacto social. Que lhe é direta, e exclusivamente, imputável.

62. O quadro geral que resulta de toda a análise efetuada, nomeadamente das decisões tomadas no âmbito dos dois contratos submetidos a fiscalização, é suscetível de gerar fundadas suspeitas quanto à eventual existência de responsabilidade que possa ir para além dos fundamentos de recusa deste visto, pelo que se ordenará a remessa de certidão do presente acórdão ao Ministério Público, a quem caberá aferir da necessidade de instauração de procedimento tendente ao completo apuramento de tais responsabilidades[4]

Os factos registados pelo Tribunal de Contas configuram potencialmente, não só violações das regras de contratação pública, mas crimes graves de fraude, favorecimento ou corrupção lesivos dos interesses financeiros da União Europeia, dado estarmos perante contratos com uma componente muito relevante de financiamento da UE, através do Programa Operacional Sustentabilidade e Eficiência no Uso de Recursos (POSEUR).

Justifica-se, nomeadamente, investigar os actos da Administração da Transtejo em todo este processo, mas também as responsabilidades da tutela governamental, exercida pelo Ministério do Ambiente e Acção Climática, na estruturação e aprovação do negócio. Afigura-se também útil escrutinar as circunstâncias em que foi preparada e decidida a deliberação da Comissão Diretiva do POSEUR de 30 de Outubro de 2020, citada no mesmo acórdão, que permitiu, já depois de ter sido lançado o processo de aquisição dos navios, co-financiar a aquisição das baterias em procedimento autónomo, também com recurso a fundos europeus. É importante, especificamente, verificar o papel que a tutela política possa ter tido nessa deliberação, e se foi respeitada a esfera de autonomia de decisão dos responsáveis pelo Programa Operacional.

Por estas razões, e por se tratar de matéria que se integra no âmbito de actuação da Procuradoria Europeia, entendemos que a apresentação desta queixa é um dever da Frente Cívica, associação legalmente constituída em Portugal com o número de pessoa colectiva 514143053, e com o fim estatutário de “identificar os problemas crónicos da sociedade portuguesa, denunciar os seus responsáveis, construir soluções e lutar pela sua implementação”[5]. Nestes termos, apresentamos a presente denúncia, sem prejuízo das diligências que venham a ser tomadas pelo Ministério Público português, ao qual o Tribunal de Contas remeteu certidão para eventual investigação judicial.

Somos, com os nossos cumprimentos

Pela Frente Cívica,

 

 Paulo de Morais, Presidente

 

João Paulo Batalha, Vice-Presidente

 



[1] Disponível no website do Tribunal de Contas, em https://www.tcontas.pt/pt-pt/ProdutosTC/acordaos/1sss/Documents/2023/ac007-2023-1sss.pdf e remetido em anexo a esta denúncia.

[2] Acórdão nº 7/2023 do Tribunal de Contas, p. 35

[3] Acórdão nº 7/2023 do Tribunal de Contas, p. 37, 38

[4] Acórdão nº 7/2023 do Tribunal de Contas, p. 45

[5] Artº. 2º dos Estatutos da Frente Cívica, consultáveis em https://frentecivica.com/?page_id=367