"Ferry Transtejo 'Almadense', 03-20. (04).jpg" por Rúdisicyon sob licença CC BY-SA 4.0. |
A Frente Cívica apresentou esta quarta-feira, 22 de Março, uma denúncia junto da Procuradoria Europeia sobre o processo de compra de navios eléctricos sem baterias por parte da empresa pública Transtejo. O caso foi revelado por um acórdão do Tribunal de Contas que recusou autorizar a compra, em separado, de nove conjuntos de baterias eléctricas necessários para que os 10 navios encomendados pela Transtejo, e que já estão em construção, possam navegar. A encomenda original dos 10 navios incluía um único conjunto de baterias.
O Tribunal de Contas extraiu uma certidão do acórdão para o Ministério Público, para que sejam investigadas suspeitas de ilegalidades por parte da Transtejo neste processo, que podem implicar a responsabilização financeira ou até criminal dos gestores da empresa. Mas, dado que o negócio envolveu fundos europeus, a Frente Cívica decidiu denunciar o caso à Procuradoria Europeia, com sede no Luxemburgo, que tem poderes de investigação de crimes que prejudiquem os interesses financeiros da União Europeia.
Na denúncia, a Frente Cívica recomenda que se esclareça não só a conduta da Administração da Transtejo, mas também eventuais responsabilidades do Governo no acompanhamento do negócio, e do Programa Operacional Sustentabilidade e Eficiência na Utilização de Recursos (POSEUR), que autorizou, já depois da compra dos navios ter sido contratada, a utilização de mais verbas europeias para adquirir as baterias.
Anexa-se cópia da denúncia feita pela Frente Cívica.
Exma. Sra. Procuradora-Chefe
da Procuradoria Europeia,
Laura Codruța
Kövesi,
Exmo. Sr.
Procurador Europeu José Guerra,
C/c Exma. Sra. Procuradora-Geral da
República Portuguesa,
Lucília Gago
Assunto: Denúncia de potenciais crimes lesivos
dos interesses financeiros da UE
Data: 22 de Março de 2023
Exma. Sra. Procuradora-Chefe,
Através do Acórdão nº 7/2023, de 14 de Março do
corrente ano[1], decidiu o Tribunal de
Contas de Portugal recusar o visto prévio ao “2.º adicional ao contrato nº
03/2021-TT”, submetido pela empresa pública portuguesa Transtejo Transportes do
Tejo S.A, que visava adquirir por ajuste directo nove packs de baterias marítimas,
pelo valor de €15.512.544, para apetrechar navios de passageiros cuja
construção está em curso ao abrigo do citado contrato nº 03/2021-TT, contrato
esse no valor de €52.440.00,00.
Ao fundamentar a sua recusa, o Tribunal de Contas
sublinhou não apenas a ilegalidade da alteração proposta ao contrato, mas a
forma como o próprio contrato inicial, referente à compra de 10 navios de
passageiros, é altamente lesivo para o interesse público, por não ter sido
desde logo incluído no caderno de encargos desse concurso o fornecimento das
baterias necessárias à operação dos navios. Citamos:
«18. A Transtejo comprou um
navio completo e nove navios incompletos, sem poderem funcionar, porque não
estavam dotados de baterias necessárias para o efeito. O mesmo seria, com as
devidas adaptações, comprar um automóvel sem motor, uma moto sem rodas ou uma
bicicleta sem pedais, reservando-se para um procedimento posterior a sua
aquisição.[2]»
O acórdão imputa à Transtejo omissões graves e
dolosas, que visariam ludibriar o Tribunal, de modo a aprovar um negócio lesivo
do interesse público:
«27. O primeiro aspeto a
sublinhar é que a Transtejo disse ao Tribunal de Contas, num curto período de
tempo, uma coisa e o seu contrário para justificar os contratos que submete.
Começa por dizer em resposta ao Tribunal no âmbito do processo de fiscalização
prévia do contrato de aquisição dos navios (um deles com bateria e outros sem
ela) que a exclusão das restantes baterias se justifica por razões gestionárias
e que seria, depois, lançado um concurso para as adquirir. O que, presume-se,
serviria melhor o interesse público financeiro. Agora vem dizer que só pode
comprar as restantes baterias àquele fornecedor, porque a solução adotada é
original, desenvolvida só para aqueles navios.
28. No primeiro caso, está a
faltar à verdade. Com efeito, quando submeteu o contrato de aquisição dos
navios (rectius, parte deles, porque estavam incompletos) a fiscalização
prévia sustentou a sua posição gestionária com a abertura subsequente de um
concurso público para a aquisição das (restantes) baterias, sendo assim
respeitados os princípios estruturantes da contratação pública da igualdade e
concorrência, que, de outra forma seriam violados, com alteração potencial do
resultado financeiro do contrato - fundamento de recusa de visto [art. 44.º,
n.º 1, al. c) LOPTC].
29. Contudo, vem agora dizer
que por força da solução técnica decorrente desse contrato ser original, não
pode recorrer à abertura de um concurso público para a aquisição das
(restantes) baterias. Logo, se essa solução é original - como alega agora -, e
ela decorre do contrato, é óbvio que sabia de tal facto quando submeteu esse
mesmo contrato a fiscalização prévia.
30. Por isso, sempre seguindo a
sua alegação, tinha perfeito conhecimento de que estava a faltar à verdade ao
tribunal quando disse que iria recorrer a um “Concurso autónomo para o
fornecimento das baterias”, induzindo-o em erro. Concurso impossibilitado pela
solução do próprio contrato que submetia a fiscalização.
31. Mais: os pressupostos em
que o tribunal tomou a decisão de concessão de visto foram incorretos, porque a
entidade faltou à verdade. Sendo que se tivessem sido prestadas ao tribunal as
informações corretas - como deveria ter sido feito - a decisão do tribunal
poderia ter sido -, à luz do que se acabou de expor e da própria jurisprudência
do tribunal nesta matéria - a de recusa do visto[3].
[…]
61. Em síntese: o comportamento
da Transtejo, com a prática de um conjunto sucessivo decisões que são não
apenas economicamente irracionais, mas também (como se viu) ilegais, algumas
com um elevado grau de gravidade, atinge o interesse financeiro do Estado e tem
um elevado impacto social. Que lhe é direta, e exclusivamente, imputável.
62. O quadro geral que resulta
de toda a análise efetuada, nomeadamente das decisões tomadas no âmbito dos
dois contratos submetidos a fiscalização, é suscetível de gerar fundadas
suspeitas quanto à eventual existência de responsabilidade que possa ir para
além dos fundamentos de recusa deste visto, pelo que se ordenará a remessa de
certidão do presente acórdão ao Ministério Público, a quem caberá aferir da
necessidade de instauração de procedimento tendente ao completo apuramento de
tais responsabilidades[4].»
Os factos registados pelo Tribunal de Contas
configuram potencialmente, não só violações das regras de contratação pública,
mas crimes graves de fraude, favorecimento ou corrupção lesivos dos interesses
financeiros da União Europeia, dado estarmos perante contratos com uma
componente muito relevante de financiamento da UE, através do Programa
Operacional Sustentabilidade e Eficiência no Uso de Recursos (POSEUR).
Justifica-se, nomeadamente, investigar os actos da
Administração da Transtejo em todo este processo, mas também as
responsabilidades da tutela governamental, exercida pelo Ministério do Ambiente
e Acção Climática, na estruturação e aprovação do negócio. Afigura-se também
útil escrutinar as circunstâncias em que foi preparada e decidida a deliberação
da Comissão Diretiva do POSEUR de 30 de Outubro de 2020, citada no mesmo
acórdão, que permitiu, já depois de ter sido lançado o processo de aquisição
dos navios, co-financiar a aquisição das baterias em procedimento autónomo,
também com recurso a fundos europeus. É importante, especificamente, verificar
o papel que a tutela política possa ter tido nessa deliberação, e se foi
respeitada a esfera de autonomia de decisão dos responsáveis pelo Programa
Operacional.
Por estas razões, e por se tratar de matéria que se
integra no âmbito de actuação da Procuradoria Europeia, entendemos que a
apresentação desta queixa é um dever da Frente Cívica, associação legalmente
constituída em Portugal com o número de pessoa colectiva 514143053, e com o fim
estatutário de “identificar os problemas crónicos da sociedade portuguesa,
denunciar os seus responsáveis, construir soluções e lutar pela sua
implementação”[5]. Nestes termos,
apresentamos a presente denúncia, sem prejuízo das diligências que venham a ser
tomadas pelo Ministério Público português, ao qual o Tribunal de Contas remeteu
certidão para eventual investigação judicial.
Somos, com os nossos cumprimentos
Pela Frente Cívica,
Paulo de Morais, Presidente |
João Paulo Batalha,
Vice-Presidente |
[1]
Disponível no website do Tribunal de Contas, em https://www.tcontas.pt/pt-pt/ProdutosTC/acordaos/1sss/Documents/2023/ac007-2023-1sss.pdf
e remetido em anexo a esta denúncia.
[2]
Acórdão nº 7/2023 do Tribunal de Contas, p. 35
[3]
Acórdão nº 7/2023 do Tribunal de Contas, p. 37, 38
[4]
Acórdão nº 7/2023 do Tribunal de Contas, p. 45
[5]
Artº. 2º dos Estatutos da Frente Cívica, consultáveis em https://frentecivica.com/?page_id=367