João Pedro Correia, CC BY 2.0 <https://creativecommons.org/licenses/by/2.0>, via Wikimedia Commons |
A Frente Cívica escreveu esta terça-feira ao primeiro-ministro, António Costa, questionando a falta de acção de Portugal na aplicação das sanções impostas pela União Europeia à Rússia, por causa da guerra na Ucrânia iniciada há um ano e meio.
Recordando uma carta enviada em Março de 2022 por um conjunto de personalidades (que incluíam os dirigentes da Frente Cívica) apelando à criação de uma task-force dedicada a identificar e congelar bens de pessoas e entidades russas em Portugal, a associação constata que, desde então, nada foi feito.
Segundo notícias vindas a público, apenas 25 milhões de euros foram apresados em Portugal, correspondentes a activos financeiros. "Isto significa que o Estado português está a falhar na aplicação das sanções da União Europeia e que o nosso país continua a ser um potencial porto seguro para bens da oligarquia russa na UE e na Zona Euro. Um ano e meio depois do início da guerra, esse falhanço é inaceitável", lê-se na carta enviada esta terça-feira pela Frente Cívica.
"O apoio que Portugal prometeu, e proclama, à Ucrânia, numa guerra que se arrasta com enorme sacrifício do povo ucraniano, não pode ter como tradução prática a omissão ou a cumplicidade com negócios da elite russa responsável pela agressão. No último ano e meio, o Estado português não fez qualquer esforço para retirar à liderança russa os bens que possam estar escondidos em Portugal".
Anexa-se a carta enviada pela Frente Cívica:
Exmo. Sr.
Primeiro-Ministro,
Dr. António Costa
C/c.:
S. Exa. o Presidente da República,
Exmo. Sr. Ministro dos Negócios
Estrangeiros,
Data: 29 de Agosto de 2023
Assunto: Aplicação das sanções da UE à
Rússia
Exmo. Sr. Primeiro-Ministro,
Há um ano e meio, a Federação Russa iniciou uma
guerra de agressão ilegal e injustificável contra a Ucrânia. O Estado Português
justamente condenou, em diversas ocasiões e em diversos fóruns, nacionais e
internacionais, a agressão do regime de Putin, manifestando a sua solidariedade
e apoio ao Governo e ao povo ucranianos. Essa posição, de defesa do direito
internacional, foi reiterada ao mais alto nível, nos últimos dias, pela visita
de S. Exa. o Presidente da República à Ucrânia.
Em paralelo, a invasão russa teve uma resposta
imediata da União Europeia que, no último ano e meio, aprovou já 11 pacotes de
sanções contra a Federação Russa e a sua liderança política, militar e
económica[1]. No
início do presente mês de Agosto, inclusivamente, o escopo das sanções foi
alargado à Bielorrússia, precisamente para assegurar a eficácia das medidas
sancionatórias e evitar que os responsáveis pela guerra consigam impunemente
contornar a sua aplicação.
A par das medidas de cooperação já anunciadas pelo
Governo português, Portugal está obrigado, enquanto membro da União Europeia, a
aplicar as sanções definidas pelo Conselho da UE, que nos obrigam a identificar
e congelar bens de pessoas e entidades sancionadas em Portugal. Em Março do ano
passado, quando a primeira ronda de sanções foi decidida, um grupo de cidadãos
escreveu a V. Exa. apelando à criação de uma task-force dedicada a
identificar e congelar bens russos em Portugal[2]. Em
resposta, o gabinete de V. Exa. informou-nos ter remetido a questão para o
Gabinete do Exmo. Sr. Ministro dos Negócios Estrangeiros, que, tanto quanto
sabemos, não lhe deu qualquer seguimento.
Desde então, ao contrário do então sugerido, não só
não foi criada nenhuma task-force dedicada, como não foi feito qualquer
reporte público sobre os bens apresados em Portugal. Em entrevista publicada em
Maio passado no Diário de Notícias, o comissário europeu da Justiça, Didier
Reynders, revelou, sem mais detalhes, que “Em Portugal, foi possível congelar
25 milhões de euros”[3]. O
mesmo montante foi referido numa reportagem da TVI/CNN Portugal em Junho
passado que, citando o Ministério dos Negócios Estrangeiros, acrescentou que os
activos “(todos eles financeiros)” dirão respeito a 44 pessoas e entidades
sancionadas[4].
O facto de, até à data, os activos detectados e
congelados serem, aparentemente, apenas activos financeiros, identificados por
acção do sistema financeiro, confirma que não tem sido feito um esforço
consistente e organizado para detectar bens de pessoas e entidades russas em
Portugal. Isto significa que o Estado português está a falhar na aplicação das
sanções da União Europeia e que o nosso país continua a ser um potencial porto
seguro para bens da oligarquia russa na UE e na Zona Euro. Um ano e meio depois
do início da guerra, esse falhanço é inaceitável.
O apoio que Portugal prometeu, e proclama, à
Ucrânia, numa guerra que se arrasta com enorme sacrifício do povo ucraniano,
não pode ter como tradução prática a omissão ou a cumplicidade com negócios da
elite russa responsável pela agressão. No último ano e meio, o Estado português
não fez qualquer esforço para retirar à liderança russa os bens que possam
estar escondidos em Portugal. É por isso imperativo que, apesar do atraso, o
Governo português aplique as recomendações que lhe foram feitas em Março de 2022
pelos cidadãos que então interpelaram V. Exa., nomeadamente:
1-
Seja finalmente criada uma task-force, para
operar enquanto estiverem em vigor as sanções decretadas pelo Conselho da UE,
liderada pela Procuradoria-Geral da República e integrando elementos do
Gabinete de Recuperação de Activos e da Unidade de Informação Financeira da
Polícia Judiciária, da Autoridade Tributária e Aduaneira, do Banco de Portugal
e de outras autoridades relevantes para a aplicação em Portugal das sanções
determinadas pelo Conselho da União Europeia;
2-
Esta task-force seja dotada da autonomia e meios
necessários para executar a sua missão de forma célere e eficaz, apurando toda
a informação existente (financeira, fiscal, policial e outra) relativa a
suspeitas de ligação entre património estabelecido em Portugal e as pessoas
individuais e colectivas constantes das listas de sanções, incluindo empresas,
entidades, contas bancárias, imóveis, fundos de investimento ou outros produtos
financeiros, automóveis, embarcações e aeronaves, portfolios de criptomoedas,
bem como qualquer outro património que seja maioritária ou minoritariamente
detido, ou tenha sido detido e, desde recentemente, já não o seja, pelas
pessoas e entidades sancionadas; ou que tenha registado fluxos financeiros ou
comerciais significativos de razoabilidade dúbia com empresas detidas pelas
pessoas e entidades sancionadas;
3-
Seja concedida a esta task-force um mandato
amplo para aceder às bases de dados nacionais relevantes, incluindo os Registos
Comercial, Predial e Automóvel, o Registo Central dos Beneficiários Efectivos,
os registos de empresas sediadas ou com actividade na Zona Franca da Madeira,
bem como das aeronaves e embarcações registadas em Portugal (incluindo no
Registo Internacional de Navios da Madeira), de forma a facilitar o rápido e
eficiente acesso à informação necessária para o mapeamento dos bens a congelar
e para a partilha de dados com organismos europeus e internacionais;
4-
Esta task-force seja encarregue de assegurar a
troca de informações com os mecanismos internacionais de cooperação existentes,
incluindo a task-force “Freeze and Seize”, da Comissão Europeia, a
task-force “Russian Elites, Proxies and Oligarchs”, o EUROJUST, EUROPOL,
EUROFISC, OLAF e Interpol, não só para facilitar o mapeamento de bens
apresáveis em Portugal mas também para incrementar a eficácia dos esforços em
curso nos outros Estados envolvidos;
5-
Esta task-force publique relatórios regulares
das actividades desenvolvidas para o cumprimento da sua missão, que devem ser
apresentados e discutidos na Assembleia da República, assegurando desta forma a
prestação de contas e o escrutínio necessários a tranquilizar os portugueses e
os nossos parceiros europeus do zelo e diligência de Portugal na aplicação das
sanções;
6-
Esta task-force tenha um mandato para propor ao
Governo ou ao Parlamento eventuais alterações ou melhorias de legislação e
regulação, de procedimentos ou de políticas públicas relacionadas com a
aplicação de sanções, o congelamento de bens e a recuperação de activos.
Pela urgência, dimensão e transversalidade das
tarefas necessárias ao bom cumprimento desta missão, a liderança política para
a criação desta estrutura de aplicação das sanções não pode ser delegada no
Ministério dos Negócios Estrangeiros – como, aliás, se constatou neste longo
ano e meio –, mas tem de ser assumida pessoalmente por V. Exa. É neste sentido
que lhe renovamos o apelo feito em Março de 2022, para que Portugal não perca
mais tempo.
Com os melhores cumprimentos,
Pela Frente
Cívica, Paulo de Morais,
Presidente |
João Paulo
Batalha, Vice-Presidente |
[1] https://finance.ec.europa.eu/eu-and-world/sanctions-restrictive-measures/sanctions-adopted-following-russias-military-aggression-against-ukraine_en#timeline-measures-adopted-in-2022-2023
[2] Carta de 29/3/2022, v. referência
nº 2037/2022, Ent.: 1719/2022, Proc. Nº A.01.0110-558/2022