domingo, 18 de dezembro de 2016

Janela da Frente - TEMPO CIRCUNSTANTE - António Manuel Ribeiro



Tempo circunstante


Pedem-me um texto, eu pergunto à febre se me permite uma pausa e venho à escrita para não defraudar os meus parceiros de causa e aventura cívica. Falhei Faro, mas sei que vai correr bem. E correr bem significa que vão aparecer pessoas, anónimos de todas as classes profissionais e graus académicos, para revelarem as suas preocupações: ouvi disso no Porto e em Lisboa, temos recebido contributos que gente que tem muito por contar reforçando este ensejo que nos uniu – mudar o país, começando pelas mentalidades acomodadas sob o peso da canga.

Sou politicamente incorrecto, que já de tanto repetido pode surgir como mais-valia curricular. Mas não é, aí que pretendo chegar. As minhas palavras aqui inscritas seguem o destino que um dia tracei para actuar civicamente pela arte – o poema e a canção – junto dos meus. Preocupo-me com o triste destino que assenta figurino inevitável desde a liberdade e a dignidade que um punhado de militares nos ofereceu na madrugada do dia 25 de Abril de 1974. De lá até hoje somam-se os erros, repetem-se as desculpas. Todos deram o melhor de si, os desaires são filhos de mãe incerta, de preferência estrangeira, e nesta míngua colectiva a malta vai-se desenrascando – estará nos genes. Talvez. Mudemos o ADN da desgraça.

Não vou recuar aos tempos de César e das tentativas de romanizar esse povo ancestral da Lusitânia, que não se sabia nem se deixava governar, e quando em cativeiro em vez de se unir para enfrentar o invasor, entretinha-se em lutas intestinas – a herança, contudo, calça como uma luva aos deste torrão amado.

Sendo politicamente incorrecto, não vou trazer ao raciocínio estatísticas e números que nunca guardo, regozijo-me de conhecer o Dr. Paulo de Morais e por ele descobrir o fartar vilanagem que tem sido estes anos ricamente democráticos (para alguns). Um matemático, professor universitário, ajuda muito a ler o que nos escondem.

O que dirige este texto breve, antes que o pequeno vírus abata o cavalo de novo, é o tempo circunstante, os discursos e o palavreado de circunstância que todos decoraram para se levarem a sério: é como o debitar de uma pobre peça teatral numa companhia de bairro à noite nos noticiários, ouvi-los cansa. Depois escutar a repetição dos comentadores oficiais, que esmiúçam o que ficou por dizer para a intoxicação ser completa, comentadores tão soberanos que já integram senadores comentaristas saídos de uma cátedra invisível.

Há um par de anos, nos tempos da troika sedeada entre nós, a Dra. Cândida Almeida, ex-procuradora-adjunta, confessou com a suavidade que os sobreiros do Alentejo propõem em Setembro, perante um aglomerado de jovens a frequentar a Universidade de Verão da PSD em castelo de Vide, que Portugal não era um país corrupto, com proliferação de habilidosos em cada esquina do poder e da economia. Olhei para a televisão, guardei a frase e o olhar ternurento de quem pelo povo assume a defesa dos seus direitos, e perguntei-me: será que a Dra. Maria José Morgado e esta senhora vivem em países diferentes?

O anterior primeiro-ministro socialista (?) ainda não tinha sido detido, e os chamados processos de colarinho branco saltavam como numa mesa de pingue-pongue partilhada pelo Procurador-Geral da República e o Juíz-presidente do Supremo Tribunal de Justiça (olha que dois, sussurra-me o vírus): ali se tudo falhasse não falhava o formalismo – a corte seguia incólume.

No dia 10 de Dezembro, o diário Correio da Manhã trazia na sua página 16 uma notícia muito importante revelando que ao longo de 2016 fora realizada uma detenção por corrupção a cada três dias. Ou aprenderam agora e depressa a arte de corromper ou a Dra. Cândida Almeida vivia noutro planeta.

Acabo este texto com a febre à porta (ainda falta uma hora para novo Ben-u-ron) com outro sublinhado que reflecte esta intoxicação de palavras de circunstância que nos atiram como rebuçados aos miúdos depois da missa com casório na aldeia: o caso em destaque a que chamaram ‘Máfia do sangue’ só vem provar que a carpete esconde muito lixo há demasiado tempo.