Tempo circunstante
Pedem-me um texto, eu pergunto à
febre se me permite uma pausa e venho à escrita para não defraudar os meus
parceiros de causa e aventura cívica. Falhei Faro, mas sei que vai correr bem.
E correr bem significa que vão aparecer pessoas, anónimos de todas as classes
profissionais e graus académicos, para revelarem as suas preocupações: ouvi
disso no Porto e em Lisboa, temos recebido contributos que gente que tem muito
por contar reforçando este ensejo que nos uniu – mudar o país, começando pelas
mentalidades acomodadas sob o peso da canga.
Sou politicamente incorrecto, que
já de tanto repetido pode surgir como mais-valia curricular. Mas não é, aí que
pretendo chegar. As minhas palavras aqui inscritas seguem o destino que um dia
tracei para actuar civicamente pela arte – o poema e a canção – junto dos meus.
Preocupo-me com o triste destino que assenta figurino inevitável desde a
liberdade e a dignidade que um punhado de militares nos ofereceu na madrugada
do dia 25 de Abril de 1974. De lá até hoje somam-se os erros, repetem-se as
desculpas. Todos deram o melhor de si, os desaires são filhos de mãe incerta,
de preferência estrangeira, e nesta míngua colectiva a malta vai-se
desenrascando – estará nos genes. Talvez. Mudemos o ADN da desgraça.
Não vou recuar aos tempos de
César e das tentativas de romanizar esse povo ancestral da Lusitânia, que não
se sabia nem se deixava governar, e quando em cativeiro em vez de se unir para
enfrentar o invasor, entretinha-se em lutas intestinas – a herança, contudo,
calça como uma luva aos deste torrão amado.
Sendo politicamente incorrecto,
não vou trazer ao raciocínio estatísticas e números que nunca guardo,
regozijo-me de conhecer o Dr. Paulo de Morais e por ele descobrir o fartar vilanagem
que tem sido estes anos ricamente democráticos (para alguns). Um matemático,
professor universitário, ajuda muito a ler o que nos escondem.
O que dirige este texto breve,
antes que o pequeno vírus abata o cavalo de novo, é o tempo circunstante, os discursos
e o palavreado de circunstância que todos decoraram para se levarem a sério: é
como o debitar de uma pobre peça teatral numa companhia de bairro à noite nos
noticiários, ouvi-los cansa. Depois escutar a repetição dos comentadores
oficiais, que esmiúçam o que ficou por dizer para a intoxicação ser completa,
comentadores tão soberanos que já integram senadores comentaristas saídos de
uma cátedra invisível.
Há um par de anos, nos tempos da
troika sedeada entre nós, a Dra. Cândida Almeida, ex-procuradora-adjunta,
confessou com a suavidade que os sobreiros do Alentejo propõem em Setembro,
perante um aglomerado de jovens a frequentar a Universidade de Verão da PSD em
castelo de Vide, que Portugal não era um país corrupto, com proliferação de
habilidosos em cada esquina do poder e da economia. Olhei para a televisão,
guardei a frase e o olhar ternurento de quem pelo povo assume a defesa dos seus
direitos, e perguntei-me: será que a Dra. Maria José Morgado e esta senhora
vivem em países diferentes?
O anterior primeiro-ministro
socialista (?) ainda não tinha sido detido, e os chamados processos de
colarinho branco saltavam como numa mesa de pingue-pongue partilhada pelo
Procurador-Geral da República e o Juíz-presidente do Supremo Tribunal de
Justiça (olha que dois, sussurra-me o vírus): ali se tudo falhasse não falhava
o formalismo – a corte seguia incólume.
No dia 10 de Dezembro, o diário
Correio da Manhã trazia na sua página 16 uma notícia muito importante revelando
que ao longo de 2016 fora realizada uma detenção por corrupção a cada três
dias. Ou aprenderam agora e depressa a arte de corromper ou a Dra. Cândida
Almeida vivia noutro planeta.
Acabo este texto com a febre à
porta (ainda falta uma hora para novo Ben-u-ron) com outro sublinhado que
reflecte esta intoxicação de palavras de circunstância que nos atiram como
rebuçados aos miúdos depois da missa com casório na aldeia: o caso em destaque a
que chamaram ‘Máfia do sangue’ só vem provar que a carpete esconde muito lixo
há demasiado tempo.